sábado, 15 de julho de 2017

GENTE












Metrópole indulgente, intransigente, abrangente, adstringente. Gente de toda espécie cruza por suas ruas. Pobre gente. Indigente ou exigente, carregando em carregados rostos as marcas da labuta, da concessão, do esgotamento, da amargura. Vida dura. Dura uma vida.

Gente de todo canto e recanto convergente. De todo centro periférico, de tantos outros antros. Por uma contingente injunção do destino, tem suas rotas rotas, num átimo, cruzadas. Raro momento: mesmos meridianos, mesma cidade, mesma infelicidade. Mesma mesmice. Os diferentes espaços de seus passos e os negligentes compassos de seus vagares levaram essa gente pungente a confluir sincronicamente seus caminhos divergentes, naquele instante único. Confrontando seus cegos olhares. Intercambiando fraternalmente calores, humores, rancores, odores, vírus e piolhos, alheia àquela excepcionalíssima conjugação sideral, pela casualidade causada.

Contingentes de gentes de todas as cores, todas as caras, todas as taras, pela tangente das quais, a globalização fisionômica se manifesta selvagem. Corpo troncudo, rosto barbudo, nariz pontudo, queixo ossudo, lábio carnudo, peito bicudo, porte parrudo, sexo peludo, pele veludo. Frutos transgênicos, não da democracia racial, mas da miscigenação brutal. Que mascara as caras, lava identidades, leva pessoalidades, louva banalidades, descolore tonalidades, massacra as peculiaridades, padroniza a falta de linguagem. Nivela pela baixeza. Desqualifica pela quantidade. Vala comum a formar o humo de homo urbanus. Filho do dióxido e da amônia, monstro de poluição e petulância.

Gente sem gentileza. Apenas uma civilidade diligente que oculta alegrias, alergias, gestos, gastos, gostos, desgostos, viroses, ‘botoxes’, desejos, invejas, armas, cheiros, gases, tiques, toques, retoques, que temperam essa entrópica salada antrópica.

Agentes de uma trama imprevisível. Cartas de um gigantesco tarô celestial arremessadas aleatoriamente. Caindo caóticas numa determinada posição indeterminada. Formam a senha que abre a porta para o futuro imediato. Para a próxima fração de segundo, onde um novo arranjo de elementos se urde, conspiratório, emergente. Uma nova fatalidade se estabelece inexorável, insurgente. Outras gentes, outros olhares, outros vagares, outros pares, outro momento sem par.

Por uma fortuita ocasião, essas pessoas anônimas que, vindas de genes e origens tão únicas, levando genes e bagagens tão díspares, vão, indiferentes, a tão diferentes lugares comuns. Vinculam-se, cúmplices involuntárias, vítimas do acaso, ao mesmo ponto da metrópole que cativa e absorve, com suas desgraças sedutoras, milhões igualmente desiguais.

Cada um levando consigo um pesado passado, um presente ausente, uma certidão atestando que vive. Uma esperança, uma experiência, uma existência repleta de outros encontros desencontrados. Um emaranhado de fios que, com seus enredos enredados, se desenrola na velocidade da vida.


Texto publicado originalmente no livro O QUE DE MIM SOU EU




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