segunda-feira, 17 de março de 2014

RAIVA


 
 

Que raiva que a raiva dá!

Numa desatenção, num desleixo, num vácuo, num crescendo, ela surge. Calma. E furiosa. E, antes que eu me dê conta, toma conta.

Instala-se feito um vírus. Vem de fora, me come e me consome por dentro. Agiganta-se, murcha, morre. Ressuscita. Me toma de mim. Me tira do sério. Me tira do Sérgio.

Ora me paralisa, ora me impulsiona. Ora pra glória, ora pro abismo.

Sem raiva, mal faço. Com raiva, faço mal, de qualquer jeito. De qualquer jeito, mal me faz. Mal me faço.

Mau com ela, pior sem ela. Quem manda ela existir? Que raiva!

Me transtorna e me transforma.

Posso ser quem não seria. Posso ser quem não queria. Posso ser quem não podia. Posso ser quem não devia.

Afinal, sou seu dono ou seu criado? Seu carrasco ou seu capacho? Sou eu que tenho a raiva ou é ela que me tem?

Está no coração? Na mente? No cérebro? No sangue? No estômago? Na adrenalina? Na carótida? No miocárdio? Em cem trilhões de células? Raivosas.

Como tirar a raiva? Com calmante? Cidreira? Maracujá? Meditação? Oração? Simpatia? Terapia? Cirurgia? Lobotomia? Homeopatia? Cromoterapia? Radioeletrocardiolaringotraqueobroncoscopia?

Boto ela pra fora com a lágrima? Com a mordida? Com o soco? Com o suor? Fazendo amor? Grito de dor?

Só sei que é preciso tirá-la, extraí-la, extirpá-la exterminá-la... Externá-la, quem sabe?

Morrendo! Aí ela vai junto. Ou fica na alma. Me assombrando do outro lado. Um fantasma vivo (e raivoso) no mundo dos mortos.

Escrever é o que me resta. Vingando-me, discorro sobre ela. Pra deixar ela com raiva. Dou um trato, tratando dela, num tratado sobre ela. “Caracterização da raiva: análise e avaliação de parâmetros intraespecíficos de desempenho nas técnicas de degradação estrutural aplicadas sobre a prevalência do sistema regulatório de interações associado aos efeitos funcionais das ações e formulações ad hoc de di­versificação comparada em amostras sequenciais randômicas otimizadas no metabolismo humano”. Até que, da verborragia, ela se encha. E pare de me encher.

Vou me concentrar: não estou com raiva, não estou com raiva, não estou com raiva... JÁ DISSE QUE NÃO ESTOU COM RAIVA, PORRA!

Vejo um lago suave, calmo, azul, águas cintilantes. Da hora. Irado! A raiva não está. Onde foi parar? Cadê-la? Deve ter-se afogado? Submersa em águas tranquilamente revoltas. Um vulcão dentro da água. Onde cê foi parar, sua peste?

Raiva, devolva-me a mim.

Raiva, me deixe ser-me. Ou só me deixe.

E se eu contar até dez? Ou em dez ‘des’: desvanece, desaparece, desocupa, desgruda, despacha, desgarra, desatrela, desapega, desinfeta, desopila... Desgraçada!

Sai raiva, sai!

Ela não sai? Então saio eu.

 

 

Crônica extraída do Livro “O QUE DE MIM SOU EU”

 

 

 


 

Crônica extraída do Livro “O QUE DE MIM SOU EU”