quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

PÉS


 
 
Divinos pés. Apoiados pelo calcanhar. Um sobre o ou­tro. Posição de descanso. Acomodados sobre uma pequena almofada que lhes retribui a maciez. Deixam-se ali abando­nar como joias raras expostas num trono acolchoado, para serem veneradas. Pérolas! Repousam eles soberanos, indolen­tes, indiferentes à própria majestade. Ao vê-los imponentes, reverencio-os com humildade.

Belos espécimes de pé, os do minha amada. Não bastasse um, dispõe ela de dois! A natureza gostou tanto de sua obra que reproduziu outro igual. Ou melhor, simétrico. Um, reflexo do outro. Companheiros, parceiros indissociáveis, perfilados lado a lado, combinam-se perfeitamente.

Embora vizinhos e íntimos, pertencem a distintos membros, clãs com tendências inconciliáveis. Um de direita, outro de esquerda. Ainda que afeitos e inseparáveis, jamais conseguem consumar sua união, devendo conformar-se em permanecer não mais do que bons amigos. Com meias in­distintas e seus correspondentes pés de sapato, ambos com o mesmo número e tamanho, mas cada qual com seu forma­to específico a determinar a pessoalidade decorrente de sua tendência. Ambos convergindo para dentro, como a querer reafirmar seu inexequível anseio por união.

Não obstante, um obstáculo se interpõe entre ambos. Um golfo intransponível, um longo vazio, a apartá-los eterna­mente. Sete pés de distância os afastam. Tão perto, tão longe. Uma insólita viagem através do tornozelo, subindo pelas per­nas, coxas, púbis, região glútea, dobrando-se o cabo da Boa Esperança e completando o périplo com o retorno pelo outro lado. Até encontrar seu pé metade.

Os dedos, prolongamentos terminais do pé, graciosa e progressivamente crescem em comprimento e largura, a par­tir do miudinho mindinho. Cada um deles mantém o mesmo padrão, com ligeiras variações, de modo a submeterem-se à harmonia e à perfeição estética do conjunto. A sensação de mudança dá-se apenas pela modulação do tamanho, um cres­cendo progressivo, até resultar no ápice do dedão. Do irretocável e definitivo protótipo, foram por­menorizados os detalhes. A dedo.

Transposta livremente para uma partitura, essa gradua­ção resulta numa peça orquestral. O compositor francês Ravel por certo se inspirou na sequência ascensional harmônica dos dedos do pé para escrever sua obra máxima, o Bolero, um ma­ravilhoso exercício de composição que privilegia a dinâmica do crescente. Uma elevação gradativa que arrebata o ouvinte, não pela variação melódica, mas unicamente pela mudança paulatina de intensidade sobre o mesmo tema, que se renova e se agiganta até o fortíssimo ‘gran finale’, auge representado pelo tronchudo dedão.

A proteção da meia não lhes rouba a graça. Antes, dá­-lhes uma graça e meia. Esta modesta e subestimada peça do vestuário consegue realçar as amenas e sublimes formas dos pés, homogeneizando o padrão da cor e da textura. Agasalha­-os, abrigando e preservando sua beleza dócil para que ela não se desgaste com a excessiva exposição às intempéries munda­nas e aos olhos gordos.

O sapato e a bota, ao contrário, acessórios pesados, en­formam, sufocam e comprimem seu delicado conteúdo, reti­rando parte de seu intrínseco encanto. Inserem em volta do pé uma membrana compacta de couro, plástico, borracha ou material sintético em substituição à sedosa pele que o reveste. Mas não se podem culpar os calçados. Desempenham eles a árdua função de blindar a fragilidade do pé contra a agressão áspera do solo irregular e pedregoso e da concretude e imun­dície das calçadas. São os parrudos guarda-costas armados do pé. Que deles não se espere mais.

Já os chinelos, mais leves e macios, feitos para caminhar dentro de casa, são um meio termo entre o acolhimento da meia e a rudeza do sapato. Sua função é menos a de proteger, mais a de acomodar os pés cansados. Deixa-os à vontade, para que possam exibir todo o esplendor de seu charme.

Quando libertos de qualquer proteção artificial é que os pés se afirmam de fato e de direito e podem manifestar-se em toda sua plenitude. Permitem-se-lhes assim apreciar a terna umidade do orvalho da grama verde, transmitindo para todo o corpo a agradabilíssima sensação dessa revigorante energia vital.

Sentindo o frescor da areia fofa, os pés descalços tam­bém se realizam, descobrem sua verdadeira natureza. A areia fina, ao recobri-los, convida-os a se entregarem. Quando, enfim, a ela se rendem, parecem abdicar de sua restrita e onerosa in­cumbência funcional para serem apossados pelo universo.

Tais sensações rejuvenescedoras são o bálsamo que compensa seu angustiante cotidiano. Durante sete dias por semana, prestam-se os pés servilmente a suster todo o peso do corpo por horas a fio, conduzindo-o para os lugares que determinamos sem os consultar, sem pagar pedágio. Brincar, pular, correr, guiar, bailar. Podemos até dispen­sar o carro e com eles fazer as coisas literalmente... a pé. Se caminhar, correr ou andar de bike são excelentes ati­vidades físicas, o crédito é todo do penalizado pé.

Após horas de requisições diárias, uns segundos de rela­xamento, ao chegar da noite, é o pouco que lhes é concedido em troca.

Deus criou cada um deles e disse: “Este será o pé. Que bela obra!”, orgulhoso de sua própria criação. E o pé ficou sendo pé. Cada um, simplesmente um pé. O pé básico. Como deve ele ser. Nada de mais. Apenas pé. Ao pé da letra.

Como os da Gata Borralheira, da lenda que glorifica o pé simples que conduziu a sua humilde dona pelo caminho da felicidade. Ainda que trabalhando duro, preservou Cinderela, sábia mas desinteressadamente, a graciosidade de seus pés, de tal sorte que o sapatinho de cristal amoldou-se-lhe como a uma luva, subjugando o enlouquecido príncipe que, após per­correr e vasculhar desesperado cada pé do reino, encontrou afinal o pé definitivo que lhe deu felicidade eterna.

Ao pé basta ser o que ele é. Belo em sua cândida singe­leza minimalista. Até no nome é modesto. Pé. Não poderia ser mais curto. Dezenas deles enfileirados, pé ante pé, não completam sequer uma li­nha de texto. Duas míseras letras bastam-lhe. Outras partes do corpo, como o esternocleidomastoideo, nem com vinte e duas conseguem dizer para que vieram ao mundo.

Esmaltes, tatuagens e sandálias incrementadas são abso­lutamente dispensáveis pois tentam ridiculamente aperfeiçoar o que a natureza já fez perfeito.

Impossível apreciar um lindo pé descalço sem sentir um impulso irresistível de mordê-lo qual um tenro, aro­mático e suculento peito de frango grelhado. Mas essa ave soberba não é para ser comida nem pode ser engaiolada. Deve estar liberta para encantar o mundo. E colocá-lo a seus pés.

O valor intrínseco do pé não pode ser apropriado. De sua exuberância é impossível tomar pé. Esta parte nobre do corpo deve sempre permanecer dentro do conjunto que o orna para exalar sua grandeza. Não seu odor.

Ao recostar-se no pé do meu amor, meu pé opaco, frio, sem graça e carente, fica mais vívido, acolhido, aquecido, feliz, por ter encontrado o verdadeiro par que o complementa. Ao lado dele, reencontra sua genuína e acolhedora morada, perdida após décadas de agruras e requisições.

Resta apenas observar fascinado, seu delicado e deli­cioso movimento de abrir e fechar os dedos, provocando pe­quenas, carnudas e saborosas ondulações na pele. Alongar-se, contrair-se, insinuando-se. Como uma mata hari inalcançável, faz sua pérfida dança de requebrar. E o mundo lhe faz reve­rência ficando sob o jugo de sua planta.

Pétalas. Acalma-me massageá-los sentindo sua pele se­dosa. Ao fazê-lo massageio meus dedos também. Cada ponto apalpado reverte o reconfortante ‘do in’ para as trilhões de células do meu corpo envolvido.

Beijo-os com amor, ao me deitar com eles.

Despedem-se.

Dão-me paz. Pés
 
 

Extraído do livro O QUE DE MIM SOU EU 



 
 

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