quinta-feira, 16 de maio de 2013

METROLOGIA EXACERBADA (I)


 Sempre que tomo o metrô linha verde na Avenida Pau­lista e, involuntariamente, coloco os olhos sobre o rosário dos nomes de estações, pintados sobre as portas de acesso, para facilitar a localização dos usuários, percebo que um deles se destaca pelo tamanho despropositadamente extenso. É uma quantidade exageradamente grande de letras, agrupadas num pequeno espaço, ao contrário dos títulos das demais estações, normalmente batizadas com nomes curtos e diretos. Trata-se da estação ‘Sumaré – Santuário Nossa Senhora de Fátima’. É tanta letra para tão pouca estação que tiveram de reduzir o seu ta­manho (da letra, não da estação), para não engolir nenhuma delas e cometer o sacrilégio de expressar o nome santificado sem a integralidade necessária de que está imbuído por direito canônico.

Tal santuário, a bem da verdade, sequer está situado ao lado da referida estação, e sim a uns trezentos metros de sua saída.

Eu nutria bastante simpatia por essa igreja, localizada em um ponto tranquilo e agradável da Av. Dr. Arnaldo. É uma região alta, facilmente identificável no horizonte distante, não pelas cruzes, mas pelas gigantescas e, à noite, iluminadas an­tenas de transmissão de TVs e rádios, que se digladiam, com suas torres afiadas e longilíneas, para ocupar os escassos ter­renos disponíveis naquele restrito e valorizado espaço de São Paulo, na ponta da região planáltica do Espigão da Paulista.

A igreja, com sua serenidade atemporal, cercada de enormes e frondosas árvores centenárias, serve ali como po­der moderador para tanta antena. Exala pelos ares eletromag­néticos da paulicéia, em contraste com as impuras ondas car­regadas de sordidez e cretinice, um pouco de paz e santidade, das quais essa urbe, desfigurada pelo desdém e pela violência, anda tão carente.

Todavia, meu sentimento de devoção, laico no conteú­do mas cristão na essência, foi repentinamente substituído por outro, malévolo e eivado de indignação, ao conjecturar sobre as possíveis razões que fizeram esse templo ser aquinhoado com tamanha deferência do poder público, a ponto de ganhar essa oferenda especialíssima de destaque nas placas de trem urbano, sem qualquer argumento plausível que a justificasse.

Ao que imagino, milhares de mapas e placas indicati­vas do Metrô, espalhadas por toda a rede, tiveram que passar por uma redentora e imaculada raspagem, custeada com di­nheiro público, que substituísse o prosaico e simpático nome de Sumaré (que antes vigorava) pelo prolixo nome estendido ‘Sumaré – Santuário Nossa Senhora de Fátima’, agregando às seis suficientes letras do bairro servido pela estação outras vinte e tantas concernentes ao santuário encravado em meio a suas quebradas.

Temos aqui um caso em que o detalhe sobrepôs-se ao principal. A parte englobou o todo, sextuplicando seu tama­nho. A robusta corpulência do nome da igreja fez quase que afundar o ‘sumário’ Sumaré, que, por sua tradição e pela vasta extensão de seus domínios, deveria se bastar.

Certamente, a população usuária do sistema, indiferen­te à mudança, urdida em algum gabinete oficial, continuará sabiamente a usar o nome original de ‘Sumaré’, movida não por um sentimento herético ou revanchista, mas apenas fa­zendo prevalecer a simplicidade e a redução coloquial, alheia à inapropriada homenagem que vingou por pressão de políticos ou de alguns clérigos que se pretendem deuses.

Pergunto aos céus a razão de tão distinta homenagem. Quem sabe a própria Virgem possa dar-me a dádiva da apa­rição, num sonho, para revelar-me por que a igreja a ela de­dicada no bairro do Sumaré tem ascendência midiática sobre as demais, algo que não condiz com a atitude despojada e modesta que permeou sua vida.

Se o terceiro dos dez mandamentos de Deus já deter­mina que não se use o Seu nome em vão, o mesmo preceito deveria ser aplicado, imagino, à sua mãe, que certamente pre­feriria que seu santo nome habitasse o âmago dos corações puros a ostentar, por imposição, placas indicativas de trans­portes urbanos.

Por que os filhos de Maomé, Moisés, Buda, Oxalá, Krishna, os politeístas, os agnósticos, os ateus e até os adora­dores de Satanás (que pelos contraditórios preceitos divinos, também devem ser considerados filhos de Deus), os quais dividem democrática e ecumenicamente o mesmo concorri­do espaço no Metrô, têm obrigação de saber que próximo à estação Sumaré está a tal paróquia católica? Seria ela mira­culosa ou teria alguma condição universal ou supra-religiosa qualquer que a fizesse sobressair-se às demais? Ou talvez seja parte de uma cruzada para catequizar à força os infiéis através da propagação da palavra de Deus, extravasada dos templos e programas pagos de TV para letreiros, placas e painéis pú­blicos.

Outra possibilidade, mais plausível, é que alguém in­fluente tenha se aproveitado do cargo que ocupa ou ocupou no governo empossado por quatro anos, e da autoridade que lhe foi conferida nesse período, para prestar homenagem à santa madre, por alguma graça atendida.

Esta manobra temporal eternizou-se já que nenhum político com mandado posterior teria ou terá coragem de afrontar o santo nome estampado e toda a comunidade reli­giosa que o reverencia, revertendo mundanamente a mudan­ça, por decreto, imortalizada.

Só assim posso entender por que o breve, despretensio­so e laico nome de Sumaré, que me parecia até então perfeito e suficiente para batizar aquela estação tenha sido desbancado.

Sendo um país onde, em obediência a norma constitu­cional, a liberdade de culto é democraticamente a todos fa­cultada, os templos de outras religiões terão o direito de rei­vindicar a adoção também de uma estação de metrô. Mesmo dentro da própria igreja católica, talvez ecloda uma disputa conciliar para fazer vingar esse ou aquele templo.

Para resolver essa pendenga sem provocar um cisma urbano-eclesiástico, só inundando a cidade de estações de me­trô para abarcar todas as lícitas reivindicações que poderiam eclodir. Talvez seja uma rara oportunidade para, não haven­do recursos suficientes para triplicar a malha metroviária, ao menos, triplicar o número de estações, reduzindo para uns duzentos metros a distância média entre elas. Assim, haveria estações para todos os gostos e credos, acolhendo a paridade e a disparidade religiosa.

(continua...)
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